Lálá de Madalena
Lálá de Madalena apresenta-se no imaginário e na memória colectiva do sul da ilha do Fogo como a incorporação mais fiel da alma e do espírito rural cabo-verdianos, resultante da mobilidade inter-ilhas. Ele transformou-se num verdadeiro retrato da construção e consolidação da crioulidade.
Da Ribeira das Patas em Santo Antão de onde partiu, ainda adolescente, conservou hábitos e traços de uma esmerada educação à qual se junta uma filosofia de vida que pela simplicidade e sabedoria que irradia, arrasta e contagia todos os que com ele convivem, ultrapassando as fronteiras do convívio local, sendo, por isso, “as partes” de Lálá motivo de conversas animadas pelos bares de Bóston e Brockton entre a comunidade foguense emigrada nos States: é por ora, aqui, as peripécias do furto do gufongo de Maninha Náná; ora ali, a piada do peixe da Brava; ora acolá, as espigas de milho verde de Tátá; Conta-se como uma das suas piadas mais recentes a seguinte:
Trabalhava em S. Filipe como guarda dos armazéns Rodrigo em Cobom. Numa das tardes de sábado, entre copos e zaragatas, foi varrido por uma viatura toyota e conduzido de urgência para o hospital. O médico, entre a azáfama da emergência, faz-lhe as perguntas de praxe:
- Nome?
- Lálá de Madalena.
- Senhor, Lálá de Madalena câ é nome!
- Desculpe Sr., sou Hilário Maria Lima.
- Idade?
- 71 Anos…
Entre as dores e o sangue que lhe escorria pela face, o médico preocupado, pergunta-lhe:
- Como se sente, senhor?
- Com muita pena do carro, Sr. Doutor! Foi direitinho para a oficina ao ponto de o mecânico, surpreendido, aconselhar o seguinte para o proprietário: “lamento dizer-lhe que a sua bateria vai precisar de um carro novo!”
Assim veio levando a vida em Patim entre estórias engraçadas, chistes e posturas de fazer rir e criar ambientes, mas também entre compreender mal o linguarejar local, como ser “mal compreendido” nalgumas expressões mais vincadamente barlaventinos, tais como rob d’saia, “t’ma boné”, no lugar de alvíssaras, funguin (que confundia com gufongo), finaçon (forma) de conversa, à bô dzurí, irmão! …. ou outras expressões populares que recriou numa fusão com o crioulo do Fogo, para melhor se fazer compreender, como sempre tese (na bica), pentedjâ, siáca (expressão derivada da cruz suástica para significar capote no jogo de cartas)…
Do corpo atlético de um duro passado da vida camponesa, conserva ainda contornos que as marcas do tempo vêm hoje suavizando, na bonita idade de 77 anos. Da indumentária simples, sobressaem sempre os pés curvos descalços, um gorro na cabeça para se proteger do sol e uma corda de sisal à cintura.
Numa expressão da sua ética de vida e respeito pelos outros, curva perante o interlocutor numa vénia de cordialidade, segurando com a pontinha dos dedos da mão esquerda o bico do chapéu e saúda-nos, como sempre: “olim li, irmão, sempre tese!”
Assim iniciamos uma rica e histórica conversa, numa tarde de azáguas, enquanto encanava uma enxada para a monda.
Animado, como sempre, dizia-nos: - ês one câ tem salunguin, nem catchorrona! Sinais ti tâ mostra que tchuva ê pâ catchor bibê saquêdo! – Incorporando já, naturalmente, no seu vocabulário, algumas expressões e sotaques foguenses.
- Como nos velhos tempos?! – Perguntamos.
- Sim, como naquel temp di bu avô, Nhônhô! – Respondeu-me com a voz já meio embargada.
Fez-se assim recuar-se aos anos cinquenta, mais precisamente a 13 de Dezembro de 1951, quando desembarcou em Fonte Bila na companhia de Nênê de Fêmea, por recomendação de Nhônhô de Nhô Tchina, respeitado emigrante de Patim, que regressando definitivamente dos States no navio Madalan, abordou, em S. Vicente, e convenceu os familiares de Lálá, aí residentes, a deixar o miúdo vir viver para o Fogo, na sua companhia.
Dizia-nos, com saudades: “Não foi nada fácil a minha vinda para o Fogo! Parte da minha família concordava, parte não! Sabe, mim era um dos cinco fidje criston de Madalena! Querido por todos! Quer por Carrim, quer por Firmina, quer por Januário ou Náná!
Entre sentimentalismos próprios de uma recordação distante e saudades que nunca mais acaba, atira-me, num gesto jocoso e brincalhão, o seguinte:
- Bocê crê sabê más, irmão? … nha vinda para o Fogo custou ao teu avô, Nhônhô, dois sacos de dinhêr! – só dóllar, que entregou á Nênê de Fêmea - o intermediário - para vacina, passagem e alimentação, como também para negociar a minha vinda na viagem seguinte do navio Ernestina.
Mesmo assim, na incerteza, o sonho de embarcar preso no imaginário do adolescente, fê-lo fugir e ficar preso três dias no porão do navio Ernestina, até ao momento da partida – a acreditar nas palavras de Lálá de Madalena, homem de muita recriação. Dizia ele, aliás, que a vida não é para levar a sério, à excepção do trabalho. Fora isso, a vida é uma eterna brincadeira. Por isso, por mais estranha e exagerada que fosse qualquer das suas estórias, coroava-as sempre com a seguinte frase emblemática, para quem dele desconfiava: “Dzês que Lálá de Madalena ê q’dzê!”
Mas porquê associar estórias de salunguin e catchorrona a estas lindas passagens das nossas vidas? – Quisemos saber!
Mundo de hoje é diferente, irmão! – Ripostou. Hoje já não existem os fantasmas da meia-noite em pino ou as madrugadas sombrias de ribê bidjá ou fundon! Nem a aziaga “noite de sete” dos recém-nascidos se nos apresenta rodeada de bruxas sedentas de lhes chuparem o sanguinho fresco! Nem burros que desandam! Eram forças da natureza que seguiam as nossas pisadas e que só Nhô Tchina, teu bisavô, sabia vencer…
Hoje tudo está claro que nem quel aga di r’bera na qual Deus lavou as primeiras criaturas. Estas primeiras encontraram a água limpa e ficaram brancas; as segundas criaturas encontraram as águas meio sujas, lavaram-se e ficaram mulatas; as terceiras criaturas, mais lentas e preguiçosas, chegaram atrasadas e só puderam molhar as palmas das mãos e as plantas dos pés, ficando por isso negras que nem noite.
Por isso Deus Nosso Senhor virou para o branco e deu-llhe uma caneta; para o mulato uma balança e para o negro esta enxada que trago comigo! È assim a vida, irmão!
Das cogitações filosóficas de Lálá acerca do destino do branco, do mulato e do negro, as profecias divinas não deixaram lugar para as explicações históricas de Teixeira de Sousa, Orlando Ribeiro ou António Carreira.
Por isso passei-lhe alguns excertos das obras pertinentes relativas à construção do espaço social foguense para ver se o convencia da verdade histórica:
Orlando Ribeiro (quel homi que bem estudâ erupção de 1951) na obra “A ilha do Fogo e as suas erupções” reafirma esta evolução social dizendo “Os mulatos, a pouco e pouco tomaram conta de terras e sobrados e são hoje os grandes comerciantes e agricultores da ilha, mandam estudar os filhos e envergonham, pela sua capacidade de progresso, as antigas famílias brancas caídas na miséria e os descendentes incapazes de se elevarem socialmente. Uns e outros guardam apenas, como marca da sua estirpe distinta, o desprezo pelo trabalho. Mesmo uma sociedade de estrutura tradicional, como esta, não tolera mais o luxo de manter a prosperidade de ociosos.”
Desta conclusão (não...manter a prosperidade de ociosos) se pode depreender que a indolência, a apatia ou resignação que uns procuram justificar no clima, outros na fome crónica, é um traço, à parte, antes derivado da dureza da vida das ilhas e da condição de insular evasivo do que da infusão do sangue africano, como alguns chegaram a sustentar, e agora coroada pelo atraso na chegada à água para se lavar, Lálá!.
Sorriu p’ra mim como que a querer dizer-me – “não, não me convenceu, irmão …”
Continuei, entretanto. Esta história de sangue azul ou filho abençoado de Deus, não é bem assim, Lálá! O espaço moldou, de modo determinante, a personalidade do foguense. Se o mundo rural introduziu novos valores, um novo poder (loja e saber) e novas transformações com o domínio dos novos proprietários “maricanos”, o espaço urbano tentou manter, por largos anos, uma estratificação social do passado. Daí a personificação do espaço urbano de S. Filipe pelos seus habitantes traduzida na expressiva frase “Ei, cuidado que ami ê di Bila!” ou “o que o berço dá, só a tumba leva”.
Interrompeu-me, repentinamente, dizendo: - Bila ê que dâ cabo de Nhanhano! Bocê ê homem de cabeça! Mas o professor Maica (Nhanhano), teu tio, também era! Como primeiro professor primário da zona despejava-nos estes ensinamentos durante as noites de verão ao longo dos bons anos de aságua que Patim conheceu.
Mas, irmão, sem desprezar os nossos ensinamentos da terra, acredito piamente na quel homem grande, lâ di riba, e nos seus sinais enunciados frequentemente através das forças da natureza.
Quando aqui cheguei, irmão, em 1951, dois fenómenos estranhos influenciaram o mundo das crenças do camponês foguense: as consequências da erupção vulcânica de Junho de 1951, que ninguém explicava ou entendia (a não ser o senhor Orlando Ribeiro), e o fenómeno que hoje conhecemos por “Boca Santo”, isto é, o aparecimento da Nossa Senhora da Ribêra, Tcháda Ntoni, em Patim – cuja aparição se deu em 1918.
Se, como se conta – dizia-me, há séculos, Nossa Senhora de Socorro (hoje, Santuário) veio, não se sabe donde, pisou o areal da praia de Fundon, junto á nascente de água, trepou a falésia, deixando marcas, e lá no alto da falésia revelou a uns pastores de cabra; aqui em Patim, foi Sérvulo de Nhâ Pinecha que à boca da noite recebeu a graça de descobrir, em 1918, Nossa Senhora esculpida no fraguedo da margem sul da ribeira. O espanto foi tanto que logo lhe deu uma cortadura de barriga que arriou ali mesmo as calças, diante da Virgem Santa. Deu de corpo e se limpou em seguida com uma pedra roliça. Era ela, sem tirar nem pôr, com o menino Jesus ao colo! Uma voz dentro da cabeça disse-lhe que não contasse a ninguém, nem à própria mulher, que a Nossa Senhora também aparecera na ribeira de Patim, tal qual em Portugal, no sítio de Fátima, um ano antes. Tinha de guardar aquele segredo até o dia em que outra voz lhe permitisse divulgar a aparição.
Sabe como é, irmão! È a mesma coisa, o mesmo procedimento de que quando se vê catchorrona! Não se pode falar, logo…
Sérvulo teve depois, ao regressar à casa, um frio e tremura tais que parecia ter apanhado paludismo. A mulher deu-lhe a beber chá forte de romãzeira, meteu-o na cama, tapou-o com cobertor americano bem encorpado, suou que o colchão ficou encharcado a pingar por debaixo da cama. Não pregou olho toda a noite. No dia seguinte, ainda antes de romper o sol, voltou ao lugar. Lá estava a imagem no mesmo rochedo. Ajoelhou-se e pediu a Nossa Senhora que lhe tirasse aquele nervoso de dentro dele que lhe havia de acender seis dúzias de velas, depois da revelação do milagre ao público. Sentiu-se imediatamente aliviado daquela trepidação interior que não o deixara dormir a noite inteira. Daí em diante, tudo lhe havia de correr bem com a ajuda de Nossa Senhora da Ribeira.
(Está a ouvir a minha história; é um conto que tira outro conto e acrescenta-lhe um ponto.)
Durante anos se fez a peregrinação à Nossa Senhora da Ribeira. Por isso, na minha opinião, Patim devia continuar a venerar a sua Santa e respeitar o lugar “Boca Santo”, a Capela e Santa que ainda lá se encontra esculpida na pedra.
- Vocês jovens deviam continuar esta missão – fica aqui um desejo contido de Lálá de Madalena!
Contido nessas filosofias e crenças, as memórias de Lálá consumiam a minha alma de foguense ciente às nossas coisas e causas e faziam-me indagar em inusitada introspecção: como é possível um filho de Santo Antão apropriar-se, assim tanto, do espírito e da mente foguense? Serão estes fenómenos, da aparente “fácil” incorporação sócio-cultural dos valores de uma ilha noutra, a essência da construção da nação cabo-verdiana que hoje nos garante a paz e estabilidade fundamentais para o nosso desenvolvimento?
Desfila, por isso, ainda na nossa mente excertos da obra do sociólogo César Monteiro sobre “a recomposição do espaço social cabo-verdiano” procurando compreender o porquê de uma pacífica e quase natural integração de um filho de Santo Antão no distante e embrenhado mundo rural do Fogo.
À semelhança do perfil do santantonense descrito na página 303 da obra em referência, pode-se concluir que a expressiva ruralidade da ilha, aliada a uma orografia hostil e adversa, forjou um homem foguense, que à semelhança do santantonense é fortemente compenetrado com o mundo rural e agarrado às suas origens, ora rígido e inflexível, ora submisso e conservador, muito trabalhador e solidário, sério, empreendedor, demasiado emotivo, extrovertido e comunicativo ao ponto de se tornar, às vezes, bisbilhoteiro.
Por isso perguntamos ao nosso interlocutor se foi fácil a sua integração no meio foguense, ao que ele respondeu afirmativamente, mas com alguns percalços na finaçon (forma) do falar foguense, em algumas posturas e hábitos, etc.
Deixamos esta despretensiosa palestra com a convicção de que destes percursos de vida se fez Cabo Verde como Nação, merecedora hoje de um estudo esclarecedor destas construções inter-ilhas, sobretudo quando se sabe que nos últimos tempos a sociedade cabo-verdiana vem sofrendo alterações e mudanças rápidas e profundas acompanhadas, em muitas etapas, por mecanismos de regulação dessa recomposição social, favorecidas pela abertura ao mundo, pela emigração e melhor acesso à informação, à educação e saúde, pela economia de mercado, com reflexos evidentes sobre os valores e padrões de vida e no relacionamento social.
Nestes termos seria interessante e útil debruçar-se sobre certas realidades; foguense, santantonense, santiaguense e demais, visando conhecer melhor estes fenómenos de interacção e de construção da nossa crioulidade e da nação cabo-verdiana.
Por LIVIO LOPES