Apesar das marcas decorrentes da passagem dos anos, Filipe Fernandes “Nho Tchina”, 91 anos, vai, pela 75ª vez, fazer-se à estrada, percorrendo a ilha, liderando uma das duas confrarias de “reinado”, que teimam em manter viva a tradição genuinamente foguense.
Na véspera de se fazer à estrada, a Inforpress conversou com Filipe Fernandes, o reinado mais antigo no activo e que desde os seus 16 anos está nesta andança.
Garantiu, de forma categórica, que “está pronto para a missão levando a imagem da Nossa Senhora”, sublinhando que devido a sua idade, se no meio de percurso sentir algumas dificuldades poderá desistir e regressar à casa.
“Enquanto tiver forças para caminhar e estiver vivo vou cumprir esta missão”, afirma Filipe Fernandes, observando que apesar de estar de luto, pois assinala-se este domingo o trigésimo dia do falecimento de um dos filhos, depois da missa vai-se juntar ao seu companheiro (Néne de Bebeto) e a outra confraria, constituída pela dupla Alfredinho e Lourenço, para dar seguimento ao reinado rezando terços junto dos devotos, ajudando-os a cumprir com promessas aos Santos em várias localidades da ilha.
Considerada como uma das festas mais antigas da ilha do Fogo, o Reinado está ligado à igreja católica e a imagem dos santos era cedida pela igreja e depois devolvida, mas, ultimamente, cada rei guarda a sua própria imagem.
Não se sabe, com precisão, a origem do “Reinado”, mas admite-se que está ligado às comemorações da festa dos Reis em Portugal, assinalada a 06 de Janeiro, mas algumas pessoas estabelecem a sua origem com alguma semelhança com “Reisado” denominação erudita atribuída aos grupos que cantavam e dançavam na véspera e dia dos Reis, 06 de Janeiro, em Portugal.
Apesar de estar nesta lide há vários anos, Filipe Fernandes, assim como os outros “reis” não sabem explicar a origem da tradição cultural nem a data da sua chegada à ilha do Fogo, embora alguns estudos apontam que esta tradição esteve ligada ao peditório para a construção da antiga Igreja Matriz de São Filipe – o que se pressupõe ter acontecido há algumas centenas de anos.
De acordo com relatos e documentos escritos, antigamente os “Reinados” eram constituídos por grupos de homens (três ou mais, e, segundo Filipe Fernandes, houve ocasião em que os grupos tinham até oito elementos), católicos e praticantes, que andavam por toda a ilha, durante três luas, a rezar terços e pedindo ajuda a favor da Igreja.
Acredita-se, no entanto, que o objectivo maior do Reinado era o da evangelização e todos os integrantes do grupo teriam de ser católicos, baptizados/crismados, casados e escolhidos pelo padre.
Segundo o mesmo, em tempos que já lá vão, houve um total de 24 confrarias de reinados e, normalmente, eram constituídas por um “rei” que dirige e controla tudo, um rei interino, um tesoureiro e um ou mais participantes.
De acordo com as regras, os “reis”, em princípio, deviam reunir-se no dia 06 de Janeiro, na Igreja Matriz de São Filipe, onde assistem a uma missa, depois da qual cada “Reinado” segue o seu próprio itinerário, dando volta à ilha, mas há muito que esta pratica deixou de ser observada.
O pároco da freguesia da Nossa Senhora da Conceição, padre Lourenço Rosa, abordado pela Inforpress sobre a celebração da eventual missa, disse que não recebeu solicitação neste sentido, observando que tem conhecimento da prática e que as próprias imagens que outrora eram guardadas na igreja no final de reinado estão na posse dos mesmos.
O religioso lamenta o facto de esta tradição “estar com dias contadas” devido a não envolvência de jovens.
Já Filipe Fernandes também compartilha desta opinião, afirma que os jovens não têm coragem de participar nesta tradição, por um lado, e que, os poucos que tentaram, envergonharam o reinado com praticas poucas abonatórias.
O terço ou “ladainha”, na maioria das vezes, é rezado (cantado) em latim. Além da imagem da Santa, o Reinado dispõe de um pequeno tambor de um pau para anunciar a sua chegada nas diferentes localidades, um sino utilizado para acompanhar o terço e o rosário, que no dizer de Filipe Fernandes constitui a “espingarda do mundo”, utilizados durante a realização do terço.
A mesa normalmente é ornamentada com toalhas ou colchas, sendo que as pontas são presas à parede (com pregos de aço) e à mesa. O santo é envolvido num lençol, excepto o rosto e, juntamente, com a imagem figuram na mesa a campainha (sino) e o rosário, enquanto o tambor é colocado debaixo da mesa que permanece enfeitada durante cinco dias após a ida do Reinado.
Esta tradição já chegou a ser celebrada com algum brilho noutros tempos. De acordo com o testemunho de um dos “reis”, costumavam sair da Igreja Matriz 24 grupos de “Reinados”, mas, por enquanto, a sua sobrevivência está sendo garantida por quatro indivíduos, sendo o mais velho com 91 anos.
Em relação a esta tradição cultural, reina alguma lenda que os reinados não passam a ribeira de Baleia, que divide os municípios de Santa Catarina e dos Mosteiros.
Há relatos de que, uma vez, um grupo de reinado desapareceu ao tentar passar nesta ribeira e, por isso, até hoje o reinado não dá a volta completa à ilha. Assim, ao chegar a Baleia, voltam atrás para fazer o percurso inverso até os Mosteiros e, depois, retornar a São Filipe, acabando por fazer duas voltas, mas sem fechar o círculo.
Inforpress/Fim